Depoimento de um Doente Neuromuscular

Depoimento de um Doente Neuromuscular

        Sou Manuel Matos, doente neuromuscular com uma atrofia espinal infantil que, pelos dogmas da ciência, me devia ter matado entre os dois e os cinco anos. Presentemente, tenho 49. Sou licenciado em Filologia Germânica e professor do Ensino Secundário oficial desde o ano lectivo de 78/79, tendo exercido a minha profissão, como todos os meus colegas sem quaisquer limitações físicas, em diferentes estabelecimentos do mesmo ensino, a princípio, sem nenhuma descriminação positiva, a partir de 1983, se não me engano na data, já ao abrigo de um documento legal que permitia a transferência do docente colocado em escola inacessível por motivo de barreiras arquitectónicas e/ou de distância para uma outra onde pudesse leccionar. Nunca beneficiei, nem enquanto estudante, nem como professor, de nenhuma adaptação institucional que me auxiliasse, ajudado que sempre fui, e só, pelos meus pais. Não porque os meus próximos (colegas, superiores hierárquicos), na sua maioria, não fossem solidários, mas porque a lei não o previa (prevê).

        A natureza destas doenças, todas elas sempre degenerativas e algumas, como a minha, profundamente devastadoras, foi-me conduzindo a uma imobilidade progressivamente descomunal, mas nada mais do que isso. Embora quase perfeitamente imobilizado (desde a perda de autonomia para me alimentar por volta dos 9-10 anos até à presente incapacidade de mastigar e engolir sólidos senão feitos em puré; desde o movimento de ascensão dos braços até às mãos e dedos completamente sem movimento, desde um quase nada com que nasci à apatia física em que me tornei – o meu corpo tudo sofreu), uma vertente da vida há que não me abandonou; a minha determinação de estar na Vida, a minha vontade.

        À diminuição implacável das funções e capacidades físicas, não basta, contudo, nenhuma vontade, hercúlea que fosse, para a suplantar, e desde cedo me vi, como de uma terceira pessoa, dependente das facilitações técnicas, desde as simples talas para suporte das mãos que se deformaram até me impossibilitarem a escrita, aos apoios suspensos dos braços para que estes mantivessem o esboço de movimento que ora mantêm, à máquina de escrever electrónica que não fui capaz de utilizar durante mais de dois anos, até ao folheador de livros ou ao computador. Posso afirmar, sem receio de exageros, que, sem estas compensações, seria obrigado a um (desculpem o palavrão) ingente esforço de criatividade para dar o sentido que exijo, de mim, para a minha própria existência. Tanto mais quanto é certo que, dele, fazem parte substancial a leitura e a escrita muito para além da dimensão profissional.

        É claro que a minha utilização do computador, que já vem desde finais dos anos 80 com os pré-históricos Sinclair, também passa por estratagemas de funcionamento, como uma placa móvel que me permita aproximar e afastar o teclado de mim, a progressiva necessidade de teclas menos pesadas, hoje, a quase absoluta substituição do teclado real pelo virtual, que acciono com um Touch Pad, e vamos lá ver o que mais, mas se, aos 49 anos, continuo a ser o que quero, em larga medida devo-o a este amigo.

        Que ainda mais amigo se tornou com o surgimento da Internet e das possibilidades de comunicação que ela incrementou. Biblioteca quase universal, fornecedora de um correio rápido e eficiente, sirvo-me dela sem quaisquer cerimónias e com bom proveito. Desde ler o jornal a recolher textos e imagens para a minha actividade lectiva ou para auxiliar na informação muitas vezes necessária para elaborar o Boletim Informativo APN (da Associação Portuguesa de Doentes Neuromusculares) cuja direcção me foi confiada a partir do seu início até à interacção, ainda muito tímida, mas já com bons resultados, com alguns colegas de trabalho, a ela recorro diariamente. Sem estes apoios, sem muitos outros que não foram aqui mencionados, estaria reduzido a um mero processo de intenções.

        Como a enorme maioria dos doentes neuromusculares que se encontram numa fase adiantada do seu ciclo de vida, dependo de uma incessante conjugação de esforços que, associada aos meus, me facultam a sobrevivência enquanto ser activo. Embora ainda não inteiramente, embora apesar do ainda tímido desenvolvimento de algumas áreas (nomeadamente, maior abrangência do reconhecimento por voz, desenvolvimento de teclados virtuais que trabalhem a duas mãos, por exemplo), sei que muito devo às Tecnologias da Informação. É meu desejo profundo que haja muito mais pessoas como eu a poderem dizer o mesmo.

 

Retirado de http://www.acessibilidade.net/trabalho/Manual%20Digital/capitulo3.htm#mm